Cerco animal - trecho inicial
Durante muitos anos existiu um cemitério de navios instalado em frente à minha casa, ocupando toda a área da janela. Olhar para aquilo me causava uma dor quase física, parecida com a dos vasos sanguíneos rompidos, ou a da cãibra, que imprevisivelmente desvia a curvatura estável do músculo – e isso me deixava nervoso. Eu observava os barcos morrendo, deixando-se devorar pelo salitre, com a superfície cheia de úlceras, de escamas produzidas pela ferrugem, e me lembrava das viagens de canoa no Don Diego, viagens que eu poderia ter feito nadando, mas que preferi embarcar, pelo simples prazer da mobilidade, da locomoção, de me sentir flutuar. Lembrava-me também do registro de outros trajetos, mais longos e de barco, com os resquícios de salitre no rosto e resistindo à interminável crueldade do sol, sentado à frente, entre a carga e as galinhas, enquanto o corpo do barco atravessava o sal, arrasava o campo plano da água, rompia o oceano em aparas como se removesse parafina. Da viagem eu gostava de tudo, até do repouso, até dos saltos entre as ondas e da sensação de que o navio restaurava seu lugar no oceano com um antigo senso de proporção, e gostava também do som da bandeira ao vento, incapaz de descrever qualquer curso, simplesmente alvoroçada. Sempre me pareceu que nas viagens os dias começam a retroceder como numa velha máquina de microfilmes, que lentamente recolhe a paisagem em direção a um nó. E que a memória tira a poeira de seus monumentos e os leva para a rua, que não há escolha a não ser caminhar para encontrá-los e reconhecê-los. Tudo me persegue, todas as coisas, até mesmo as pessoas, até suas posturas, os anéis nos dedos, todos os tipos de memórias, mesmo aquelas vagas em que mal a palavra me toca e já não consigo retê-la, mas dois tipos em especial. Um deles vem de um estímulo provavelmente artificial, criado pelo apetite desordenado de querer lembrar, ou por uma beleza inútil que não descansa; a imagem incerta de algo que escapa, uma memória que transpira mentira: dois coelhos cruzam o pomar, mas eu tenho braços muito curtos para agarrá-los. E quando me baixa na cabeça essa imagem alquebrada, tão pequena quanto uma lasca de memória, ouço minha mãe dizer uma coisa plástica e dura, algumas palavras honestas ditas com toda a simplicidade: Esse sol não esquenta bem ou mal, não. Esquenta tudo. Ele não diz: não vou esquentar direito esse aqui, não. Mal também. A outra é uma memória mais fixa, implacável, sedentária, muitas vezes reconstruída, penso eu, pela cruel influência que exercem os hábitos: Lásides está deitado no colchão, vestindo apenas uma cueca ridícula, que lembra um jeans, e me pede para subir em cima dele. Eu me levanto e trato de correr; e procuro a tartaruga entre os esconderijos da casa.